Exuberância enrustida (ótimo texto)

A maquiagem, a tatuagem, o cuidado com a pele. É nesses arremates que revelamos nossa personalidade
Com seu inconfundível sotaque argentino, no intervalo do cafezinho da clínica, ela me disse: "Tu te achas muito bonita". Eu, uma psicóloga desalinhada, na casa dos 20; ela, uma psicanalista quarentona e cheia de charme. Em eterno litígio com minha imagem, custei a entender a alfinetada. Complementou: "É que não te pintas, porque achas que não precisas..."
Minha colega, de fato, não saía de casa sem delineador. Como se seus enormes olhos azuis necessitassem de algo a mais. Sempre precisamos de algo a mais, era o subtexto. É pretensão pensarmo-nos suficientes com o que temos. No fundo, todo discreto se acha grande coisa. Paradoxal, mas verdadeiro.
Discreto não é displicente, não boicota sua imagem. Ninguém é tão bonito a ponto de sobreviver ao esculacho. Passei da idade que ela tinha na época, hoje não saio de casa sem delineador, mas costurei uma versão pessoal do conselho recebido.
O investimento na própria imagem pode ser óbvio, como no caso das pessoas chamativas, enfeitadas, ou mesmo uma aposta no detalhe, no que é invisível a olho nu. Professo o segundo tipo, daqueles que fazem o gênero da discrição presumida, da falsa humildade, da exuberância enrustida, chame como quiser. O cuidado com a lingerie, por exemplo, traduz esse espírito. Embora fique oculta a maior parte do tempo, é meticulosamente escolhida conforme o que revela, comprime, marca, sugere. Nunca cessa o combate à topografia da celulite e das estrias, acidentes geográficos a serem reparados. São preocupações obsessivas, parte de um complicado processo que termina com o arremate da maquiagem, reta de chegada de um labirinto de incertezas. Os homens não se cansam de afirmar que não reparam nem na metade dessas providências, mas as mulheres insistem num cuidado, incapaz de calar a profunda inquietação, o pânico do erro. No fundo, almeja-se a perfeição, como se houvesse possibilidade de controlar o olhar de que seremos objeto, ditar o conteúdo do desejo. A fantasia subjacente é de dominação. E a insegurança gera sede de poder.
Minha avó insistia em que uma mulher deve estar sempre impecável por baixo das roupas. "Nunca se sabe quando vamos parar no hospital", dizia. Sua intimidade era meticulosa no aguardo da síncope, do atropelamento. Eu prefiro cultivar a fantasia de que meus caprichos não se destinem ao encontro com o azar, que se enderecem ao escolhido para apreciar meus detalhes. Mas aprendi algo com minha amiga experiente: não há lugar para o pecado da soberba, reparei que até seus lindos olhos se beneficiavam do arremate.

Diana Corso é detalhista, coisa de gente insegura.

Revista Vida Simples!

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